Transição entre a Lei 8666 e a ‘futura nova’ Lei de licitações
Insegurança ou prudência?
*Ana Luiza Jacoby Fernandes
*Murilo Jacoby Fernandes
A nova lei de licitações, aprovada no senado[1], nesta última quinta-feira, segue agora para a sanção presidencial.
A redação do projeto[2] dispõe que a lei terá aplicação imediata, no entanto, a atual Lei de Licitações e diplomas específicos da Lei do Pregão, só serão revogados decorridos 2 (dois) anos da publicação oficial da nova Lei de Licitações.[3]
Estes dispositivos, em primeira leitura, podem aparentar um cenário de insegurança jurídica, pois, a partir da sanção presidencial, poderá determinado órgão aplicar a “nova Lei” em uma licitação, enquanto em outra, a Lei nº 8.666/1993, ou a Lei nº 10.520/2002, ou a Lei nº 12.462/2011.
Na prática, no entanto, a decisão adotada no texto legal de um período de transição, com aplicação simultânea dos dois regramentos, aparenta ser a opção mais prudente. A mudança de um sistema normativo para outro – especialmente no tocante a uma matéria tão complexa, como compras públicas, não pode ocorrer de forma brusca, não é desejável a quebra total de um normativo até que se tenham reguladas situações especificas.
Da inevitabilidade dos simultâneos regimes nos contratos administrativos
Não há hipótese onde seria possível haver um momento único, preciso e definido para aplicação da norma.
Caso houvesse sido estabelecida uma data a partir da qual todas as licitações deveriam ocorrer com base na nova Lei, ainda assim, os contratos vigentes estariam submetidos ao regime anterior, havendo, da mesma forma, contratos administrativos simultaneamente regidos pelos dois regimes (leis anteriores x nova Lei).
Tal fato torna-se evidente quando se considera as diferenças de vigências entre contratos de serviços continuados e contratos por escopo, por exemplo. Desse modo, os contratos celebrados na véspera da nossa fantasiosa data fatal para aplicação da nova Lei, continuar-se-iam vigentes pelas normas anteriores, continuando a existir a simultaneidade de aplicação de regimes jurídicos distintos.
Entendimento diverso, de que a estes contratos em curso aplicar-se-ia a nova lei, além de ferir o princípio do tempus regit actum, uma vez que o edital – norma entre as partes – estabeleceu regime diverso gera, aí sim, o grande risco da insegurança jurídica.
Impor a alteração dos regimes dos contratos administrativos vigentes acarretaria, por exemplo que:
a) licitações realizadas e propostas ofertadas considerando contratos de 60 meses, poderiam ter sua vigência prorrogada para até 10 anos;
b) novas exigências implementadas no curso do contrato, que não foram consideradas nas suas composições de cursos;
c) alterações de procedimentos formais em todo e qualquer contrato administrativo.
Tais situações tornariam inviável a gestão de tais instrumentos e, indubitavelmente, resultariam em uma enxurrada de judicializações para pacificações dos conflitos.
Da liberdade de escolha dos gestores
Independentemente de como se daria a transição entre os regimes, uma coisa é certa, será necessário a capacitação das equipes.
Nesse ponto a metodologia adotada no Projeto de Lei, ao estabelecer a existência de dois regimes jurídicos simultâneos, traz algumas evidentes vantagens.
Permitir que os gestores públicos, os primeiros aplicadores da norma, decidam quando utilizar a Nova Lei, obviamente considerando o prazo máximo de dois anos, segue um importante espírito da norma: o empoderamento do gestor.
Em uma análise mais aprofundada do Projeto de Lei é possível verificar uma nítida intenção de empoderamento do gestor público. Aumentar a sua liberdade para o uso de ferramentas e tomadas de decisões permite que o gestor traga a sua experiência para o processo, na resolução de problemas, bem como no aumento da efetividade das compras públicas.
O gestor público que buscou se capacitar, pode decidir aplicar a nova norma em uma licitação com menor complexidade, como por exemplo, aquisição de material de almoxarifado. “Testar” as novas regras e seus impactos em um cenário de menor risco de menor complexidade. E quando confrontado com uma contratação complexa e detalhada, como por exemplo, contratação de terceirização de mão-de-obra, decidir aplicar a Lei nº 8.666/1993, até uma próxima oportunidade.
Em outro exemplo, um gestor acostumado a especialidade das temáticas de obras públicas, pode decidir “experimentar” o novo regramento em uma obra de menor complexidade.
Por outro lado, a norma trouxe sabedoria ao estabelecer que a decisão pela aplicação do regramento ocorrerá na confecção do Edital. Ou seja, o edital, o documento público de convocação dos interessados para a futura licitação, deverá indicar qual regramento será seguido nessa licitação.
Tal postura evitará surpresas ao longo do processo licitatório e que os fornecedores fiquem submetidos a mudanças de posicionamento por parte da Administração Pública.
Da resistência cultural
Necessário destacar, todavia, que pelas experiências pretéritas envolvendo alterações normativa, como a Lei do Regime Diferenciado de Contratações Públicas[4], a Lei das Estatais[5] e o Decreto do Pregão Eletrônico[6] o que se verifica na prática é maioria dos órgãos públicos deixando para os últimos dias do fim do prazo a capacitação dos seus agentes e a adequação para a aplicação de novos regramentos.
Desse modo, não se espera que a realidade seja muito diversa com a sanção da Nova Lei. A esmagadora maioria dos órgãos públicas deixarão para os últimos dias antes da revogação das Leis anteriores a capacitação e uso da nova norma.
Na totalidade do cenário nacional, apenas poucos órgãos e entidades constituirão a exceção que se utilizará desse benefício.
Tal cenário contudo, não deve ser considerado como desmotivador. Até porque, considerando que vários pontos trazidos no Projeto de Lei necessitarão de implementação de sistemas informatizados e de regulamentações infralegais, essas experiências serão, sem sombra de dúvidas, extremamente úteis para sistematizações e regulamentações mais eficientes.
Outra inevitabilidade: os ônus e os bônus dos “desbravadores”, ainda que sejam apenas os desbravadores do novo regime jurídico. Dos obstáculos dos sistemas informatizados
O texto aprovado no Senado Federal, ainda pendente de redação final, representa um avanço significativo frente à Lei nº 8.666/1993. E um dos pontos de destaque é a previsão de soluções tecnológicas para o avanço das licitações públicas.
Se por um lado, a norma não faz referência a temas mais modernos, como marketplace, já em estudo pelo Ministério da Economia, trouxe a preferência por licitações eletrônicas, registros eletrônicos de informações, centralizações de informações no Portal Nacional de Compra Pública.
Em se tratando de aplicação da nova norma, é inevitável nos depararmos com situações de indisponibilidade e atraso nas adequações desses sistemas frente as previsões legais.
Desse modo, espera-se que normativos infralegais flexibilizem a utilização desses sistemas durante o período de transição para que não se tornem obstáculos na utilização e experimentação das novas regras.
Da necessidade de sensibilidade dos órgãos de controle
Outro ponto de atenção, é a preocupação do posicionamento dos órgãos de controle frente a aplicação das novas regras.
Esperamos que, mais do que nunca, os órgãos de controle adotem uma postura orientadora com o objetivo de guiar e apoiar os gestores frente a este novo desafio, do mesmo modo que se verificou nos anos que seguiram a publicação da Lei nº 8.666/1993.
Nesse ponto, sugere-se aos gestores desbravadores que fomentem a aproximação dos órgãos de controle: informem-nos de quando pretenderem utilizarem a nova Lei, convidem-nos para acompanhar as sessões.
Tal postura colaborativa, além de permitir aos órgãos de controle acompanharem as “novidades”, demonstra a boa-fé do gestor de trazer à luz, as decisões tomadas e praticadas adotadas.
Conclusão
Considerando, como bem pontuado por Hermann Jahrreiss, que “legislar é fazer experiencias com o destino humano”, a criação de um método para experimentar a nova legislação, representa o mais próximo que podemos chegar, dos experimentos científicos em ambiente controlado, o que, sem sombra de dúvida, representa um enorme ganho para a Administração Pública e a sociedade.
Capacitar deve ser a palavra de ordem e aos órgãos de controle deve ser a missão de colaborar na correta compreensão dos novos dispositivos legais.
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[1] SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº 4.253/2020. Substitutivo de Relatoria do Senador Anastasia. Aprovado na sessão de 10 de dezembro de 2020.
[2] Vale destacar que o texto analisado não se trata da redação final, pendente ainda da redação pela Secretaria Geral da Mesa do Senado Federal.
[3] Redação utilizada na elaboração deste artigo: “Art. 190. Ficam revogados:
I – os 89 a 108 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, na data de publicação desta Lei;
II – a Lei nº 666, de 21 de junho de 1993, a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e os arts. 1º a 47 da Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, após decorridos 2 (dois) anos da publicação oficial desta Lei.
Art. 191. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
§1º O contrato cujo instrumento tenha sido assinado antes da entrada em vigor desta Lei continuará a ser regido de acordo com as regras previstas na legislação revogada.
§2º Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 190, a Administração poderá optar por licitar de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso.
§3º Na hipótese do § 2º deste artigo, se a Administração optar por licitar de acordo com as leis citadas no inciso II do caput do art. 190 desta Lei, o contrato respectivo será regido pelas regras nelas previstas durante toda a sua vigência.”
[4] BRASIL. Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011. Institui o Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC; altera a Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, a legislação da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e a legislação da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero); cria a Secretaria de Aviação Civil, cargos de Ministro de Estado, cargos em comissão e cargos de Controlador de Tráfego Aéreo; autoriza a contratação de controladores de tráfego aéreo temporários; altera as Leis nºs 11.182, de 27 de setembro de 2005, 5.862, de 12 de dezembro de 1972, 8.399, de 7 de janeiro de 1992, 11.526, de 4 de outubro de 2007, 11.458, de 19 de março de 2007, e 12.350, de 20 de dezembro de 2010, e a Medida Provisória nº 2.185- 35, de 24 de agosto de 2001; e revoga dispositivos da Lei nº 9.649, de 27 de maio de 1998.
[5] BRASIL. Lei nº 13.3030, de 30 de junho de 2016. Dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.
[6] BRASIL. Decreto Nº 10.024, de 20 de setembro de 2019. Regulamenta a licitação, na modalidade pregão, na forma eletrônica, para a aquisição de bens e a contratação de serviços comuns, incluídos os serviços comuns de engenharia, e dispõe sobre o uso da dispensa eletrônica, no âmbito da administração pública federal.
Fonte: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/transicao-entre-a-lei-8666-e-a-futura-nova-lei-de-licitacoes-28122020
Acesso em 08/01/2021 às 10:30.